Instalação de Miler Lagos
Muitas vezes, olhando para as multidões que se encarniçavam de encontro
ao prédio, aquele vasto clamor de buzinas e apitos, gritos e súplicas e pragas,
experimentava um terror profundo, um sentimento de cerco e ameaça. Sempre que
queria sair procurava um título na biblioteca. Sentira, enquanto ia queimando
os livros, depois de ter feito arder todos os móveis, as portas, os tacos do
soalho, que perdia liberdade. Era como se estivesse ateando fogo ao planeta. Ao queimar Jorge Amado deixara de poder
revisitar Ilhéus e São Salvador. Queimando Ulisses, de Joyce, perdera Dublin.
Desfazendo-se de Três Tristes Tigres vira arder a velha Havana. Restavam menos
de cem livros. Mantinha-os mais por teimosia do que para lhes dar uso. Via tão
mal que mesmo com o auxílio de uma enorme lupa, mesmo colocando o livro em
pleno sol, suando como se estivesse numa sauna, levava uma tarde inteira para
decifrar uma página. Nos últimos meses
começara a escrever as frases preferidas dos livros que lhe restavam, em letras
enormes, nas paredes ainda livres do apartamento. Não tarda muito, pensou, e
estarei realmente aprisionada. Não quero viver numa prisão. Adormeceu.
José Eduardo Agualusa in Teoria Geral do Esquecimento
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