sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Sobre eles, os grandes companheiros!

 

 Instalação de Miler Lagos

Muitas vezes, olhando para as multidões que se encarniçavam de encontro ao prédio, aquele vasto clamor de buzinas e apitos, gritos e súplicas e pragas, experimentava um terror profundo, um sentimento de cerco e ameaça. Sempre que queria sair procurava um título na biblioteca. Sentira, enquanto ia queimando os livros, depois de ter feito arder todos os móveis, as portas, os tacos do soalho, que perdia liberdade. Era como se estivesse ateando fogo ao planeta. Ao queimar Jorge Amado deixara de poder revisitar Ilhéus e São Salvador. Queimando Ulisses, de Joyce, perdera Dublin. Desfazendo-se de Três Tristes Tigres vira arder a velha Havana. Restavam menos de cem livros. Mantinha-­os mais por teimosia do que para lhes dar uso. Via tão mal que mesmo com o auxílio de uma enorme lupa, mesmo colocando o livro em pleno sol, suando como se estivesse numa sauna, levava uma tarde inteira para decifrar uma página. Nos últimos meses começara a escrever as frases preferidas dos livros que lhe restavam, em letras enormes, nas paredes ainda livres do apartamento. Não tarda muito, pensou, e estarei realmente aprisionada. Não quero viver numa prisão. Adormeceu.

José Eduardo Agualusa in Teoria Geral do Esquecimento 


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